Ensaio sobre amizade
Que qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com
quem pretende um relacionamento? Perguntou-me o jovem
jornalista, e lhe respondi: aquelas que se esperaria do melhor amigo. O resto,
é claro, seriam os ingredientes da paixão, que vão além da amizade. Mas a base
estaria ali: na confiança, na alegria de estar junto, no respeito, na
admiração. Na tranqüilidade. Em não poder imaginar a vida sem aquela pessoa. Em
algo além de todos os nossos limites e desastres.
Talvez seja um bom critério. Não digo de escolha, pois amor é instinto e
intuição, mas uma dessas opções mais profundas,arcaicas, que a gente faz até
sem saber, para ser feliz ou para se destruir. Eu não quereria como parceiro de
vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces
emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu. Falo daquela
pessoa para quem posso telefonar, não importa onde ela esteja nem a hora do dia
ou da madrugada, e dizer: “Estou mal, preciso de você”. E ele ou ela estará
comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou
simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me
reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for.
Mais reservada do que expansiva num primeiro momento,
mais para tímida, tive sempre muitos conhecidos e poucas,
mas reais, amizades de verdade, dessas que formam, com a
família, o chão sobre o qual a gente sabe que pode caminhar.
Sem elas, eu provavelmente nem estaria aqui. Falo daquelas amizades para as
quais eu sou apenas eu, uma pessoa com manias e brincadeiras, eventuais
tristezas, erros e acertos, os anos de chumbo e uma generosa parte de ganhos
nesta vida.
Para eles não sou escritora, muito menos conhecida de público algum: sou gente.
A amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele
mas sem o ônus do ciúme – o que é, cá entre nós, uma bela
vantagem. Ser amigo é rir junto, é dar o ombro para chorar,é poder criticar
(com carinho, por favor), é poder apresentar namorado ou namorada, é poder
aparecer de chinelo de dedo ou roupão, é poder até brigar e voltar um minuto
depois, sem ter de dar explicação nenhuma. Amiga é aquela a quem se pode ligar
quando a gente está com febre e não quer sair para pegar as crianças na chuva:
a amiga vai, e pega junto com as
dela ou até mesmo se nem tem criança naquele colégio.
Amigo é aquele a quem a gente recorre quando se angustia
demais, e ele chega confortando, chamando de “minha
gatona” mesmo que a gente esteja um trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível,
isso eu soube desde cedo, e não viveria sem eles. Conheci uma senhora que se
vangloriava de não precisar de amigos: “Tenho meu marido e meus filhos, e isso
me basta”. O marido morreu, os filhos seguiram sua vida, e ela ficou num
deserto sem oásis, injuriada como se o destino tivesse lhe pregado uma peça.
Mais de uma vez se queixou, e nunca tive coragem de lhe dizer, àquela altura,
que a vida é uma construção, também a vida afetiva. E que amigos não
nascem do nada como frutos do acaso: são cultivados com…
amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem método nem aflição: crescendo
como crescem as árvores e as crianças quando não lhes faltam nem luz nem espaço
nem afeto.
Quando em certo período o destino havia aparentemente
tirado de baixo de mim todos os tapetes e perdi o prumo, o rumo, o sentido de
tudo, foram amigos, amigas, e meus filhos, jovens adultos já revelados amigos,
que seguraram as pontas.
E eram pontas ásperas aquelas. Agüentei, persisti, e continuei amando a vida,
as pessoas e a mim mesma (como meu amado amigo Erico Verissimo, “eu me amo mas
não me admiro”) o suficiente para não ficar amarga. Pois, além de acreditar no
mistério de tudo o que nos acontece, eu tinha aqueles amigos.
Com eles, sem grandes conversas nem palavras explícitas,
aprendi solidariedade, simplicidade, honestidade, e carinho.
Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada,
estou homenageando aqueles, aquelas, que têm estado comigo seja como for, para
o que der e vier, mesmo quando estou cansada, estou burra, estou irritada ou
desatinada, pois às vezes eu sou tudo isso, ah!, sim. E o bom mesmo é que na
amizade, se verdadeira, a gente não precisa se sacrificar nem compreender nem
perdoar nem fazer malabarismos sexuais nem inventar desculpas nem esconder
rugas ou tristezas. A gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo
complicado e desanimador, deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois
o verdadeiro amigo é confiável e estimulante,engraçado e grave, às vezes
irritante; pode se afastar, mas sabemos que retorna; ele nos agüenta e nos
chama, nos dá impulso e abrigo, e nos faz ser melhores:como o verdadeiro amor.
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